"Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre palhaço que por uma hora se espavona e se agita no palco, sem que depois seja ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de fúria e muito barulho, que nada significa".
Macbeth, Ato 5, Cena 5, linhas 22-31

15 de mai. de 2011

Os Tipos Religiosos



Autor: Richard Dawkins
Tradução: Francisco Saiz
Revisão: José Moreira da Silva
Origina: The “know-nothings”, the “know-alls”, and the “no-contests”

Esta foi uma palestra de Richard Dawkins extraída do  Nullifidian
(Dezembro 1994)
Religiosos dividem-se em três grupos principais quando confrontados com a ciência. Vou agrupálos em os “sabe-nada”, os “sabe-tudo” e os “não-tem-nada-a-ver”. Suspeito que esse Dr. John Habgood, o Arcebispo de Nova Iorque, pertence provavelmente ao terceiro desses grupos, portanto começarei por
ele.
Os “Não-tem-nada-a-ver” já se conformaram com o fato de que a religião não pode competir com
a ciência em seu próprio terreno. Pensam que não  há nenhuma disputa entre a ciência e a religião,
porque simplesmente tratam de coisas diferentes. O  relato bíblico da origem do universo (a origem da
vida e do homem, a diversidade das espécies, etc.) – todas essas coisas, já se sabe, são inverdades.
Os “Não-tem-nada-a-ver” não se incomodam com  isto: consideram esse relato extremamente
ingênuo, sendo quase de mau gosto perguntar sobre  uma história bíblica: “é verdadeira mesmo?”.
Respondem: “Verdadeira, verdadeira? Claro que não. Pelo menos no sentido tosco e literal. A ciência e a
religião não estão disputando o  mesmo território. Tratam de coisas diferentes. São igualmente
verdadeiras, mas cada uma a seu modo.”
Uma frase favorita e completamente sem sentido é “alçada religiosa”. Você depara-se com ela em
declarações tais como “a ciência explica esse fato muito bem, mas esse outro é da alçada religiosa.”
Os “sabe-nada”, ou os fundamentalistas, de certa maneira são mais honestos. São fiéis à história.
Reconhecem que até recentemente uma das principais funções das religiões era científica: a explicação da
existência, do universo, da vida. Historicamente, a maioria das religiões sempre foi cosmológica e
biológica. Suspeito que hoje, se você pedisse que alguém justificasse sua crença em Deus, a razão
predominante seria científica. A maioria, penso eu, acredita que é necessário um Deus para explicar a
existência do mundo, particularmente da vida. Estão errados, é claro, mas nosso sistema de instrução é
tal que muitos não sabem.
São também fiéis à historia porque não se pode escapar das implicações científicas da religião.
Um universo com um Deus seria completamente diferente de um sem. Uma física, uma biologia onde haja
um Deus é obrigada a parecer diferente. Assim, as afirmações mais básicas da religião são científicas. A
religião é uma teoria científica.
Sou acusado às vezes de intolerância arrogante em meu tratamento dos criacionistas.
Naturalmente, a arrogância é uma característica  desagradável, e eu deveria odiar ser visto como
arrogante de uma maneira geral. Mas a paciência tem limites! Para se ter uma idéia de como é ser um
estudante profissional de evolução, chamado a ter um debate sério com criacionistas, a seguinte
comparação é justa: imagine-se como um erudito que passou toda sua vida estudando a historia romana
em todo seu rico detalhe; de repente, alguém aparece, formado em engenharia marítima ou no estudo da
música medieval, e se põe a argumentar que o Império Romano nunca existiu. Você não acharia duro suprimir sua impaciência? E isso não se pareceria um pouco com arrogância?
Meu terceiro grupo, os “sabe-tudo” (eu indelicadamente chamo-os assim por causa da sua
posição condescendente), pensam  que a religião é boa para as pessoas, e talvez até mesmo para a
sociedade. Talvez boa porque os consola na morte ou aflição, talvez porque forneça um código moral.
Não importa se a crença religiosa é ou não verdadeira. Talvez não haja um Deus; nós, os
instruídos, sabemos que não existe quase nenhuma evidência para tal, sem falar em idéias tais como a
Virgem dar à luz ou a Ressurreição. Mas a massa sem educação precisa de um Deus para mantê-la fora
do crime ou confortá-la na aflição. O fato de Deus provavelmente não existir pode ser deixado de lado no
interesse de um bem social maior. Não preciso dizer mais nada sobre os “sabe-tudo”, porque nunca
declarariam ter qualquer coisa para contribuir à verdade científica.

Deus é uma supercorda?
Retornarei agora aos “Não-tem-nada-a-ver”. Seu argumento é certamente digno de exame sério,
mas penso que concluiremos que ele tem só um pouquinho mais de mérito que os de outros grupos.
Deus não é um velhinho de barba branca no céu. Bem, então, o que é Deus? Nesse momento
começam as evasivas covardes. Que variam o tempo todo. “Deus não está no exterior, e sim no interior
de todos nós”. “Deus é a base do ser”. “Deus é a essência da vida”. “Deus é o universo”. “Você não
acredita no universo?” “É claro que acredito no universo” “Então você acredita em Deus”. “Deus é amor,
você não acredita no amor?” “Certo, então você acredita em Deus?”
Os físicos modernos se expressam, às vezes, com um quê de misticismo quando entretêm
perguntas tais como por que o Big-Bang aconteceu quando aconteceu, por que as leis da física são estas
e não aquelas, até mesmo por que o  universo existe, e assim por diante. Às vezes, os físicos podem
lançar mão do discurso de que há um cerne oculto de mistério que não compreendemos, e talvez nunca
entenderemos; e podem então dizer que talvez este cerne oculto de mistério seja um outro nome para
Deus. Ou nas palavras de Stephen Hawking, se compreendermos estas coisas, talvez “conheceremos a
mente de Deus”.
O problema é que esse Deus, da maneira sofisticada como os físicos usam esse termo, não se
assemelha nem um pouco com o Deus da Bíblia ou de qualquer outra religião. Se um físico disser que
Deus é um outro nome para a Constante de Planck, ou que Deus é uma supercorda, nós entenderíamos
isso como uma maneira metafórica pitoresca de dizer que a natureza das supercordas ou do valor da
constante de Planck é um mistério profundo. Não tem, obviamente, a menor conexão com um ser capaz
de perdoar pecadores, escutar preces, que se importa se o Sábado começa às 5 ou 6 da tarde, se você
usa véu ou se seu braço está aparecendo; e nenhuma ligação, qualquer que seja, com um ser capaz de
impor uma pena de morte a Seu filho a fim de expiar os pecados do mundo antes e depois de nascer.

A fabulosa Bíblia
O mesmo se diz das tentativas de atribuir o Big-Bang da cosmologia moderna ao mito do Gênesis.
Há somente uma semelhança totalmente trivial entre as concepções sofisticadas da física moderna e os
mitos da criação dos babilônios e dos judeus que herdamos.
O que os “Não-tem-nada-a-ver” têm a dizer sobre as  partes da escritura e dos ensinamentos
religiosos que outrora seriam considerados verdades religiosas e científicas inquestionáveis; a criação do
mundo, da vida, os vários milagres do Velho e Novo Testamento, sobrevivência após a morte, a Virgem dar à luz? Estas histórias tornaram-se, nas mãos dos “Não-tem-nada-a-ver”, pouco mais do que fábulas
morais, equivalentes aos contos de Esopo de Hans Anderson. Não há nada de errado nisso, mas é
irritante que quase nunca admitam que é isto que estão fazendo.
Por exemplo, ouvi recentemente o ex-Rabino Principal, Sir Immanuel Jacobovits, falando sobre os
males do racismo. O racismo é nocivo e, portanto, merece um argumento contrário melhor que o que ele
deu. Adão e Eva, argumentou ele, foram os antepassados de toda a raça humana. Conseqüentemente,
toda a humanidade pertence a uma raça, a humana.
O que dizer de um argumento como esse? O Rabino Principal é um homem letrado, obviamente
não acredita em Adão e Eva. Portanto, o que ele pensou exatamente que estava dizendo?
Ele deve ter usado Adão e Eva como uma fábula, da mesma forma que alguém pode usar a
história de Jack o Matador de Gigantes [2] ou da Cinderela para ilustrar  algum louvável exemplo de
moralidade.
Tenho a impressão que os lideres  religiosos estão tão habituados  a tratar as histórias bíblicas
como fábulas que se esqueceram da diferença entre fato e ficção. É como os que, quando alguém morre
no The Archers [3], escrevem cartas de condolências umas às outras.

Herdando a religião [4]
Sendo darwinista, algumas vezes me surpreendo quando examino a religião. A religião apresenta
um padrão de hereditariedade o qual penso ser similar à hereditariedade genética. A grande maioria das
pessoas segue uma religião particular. Existem centenas de denominações religiosas diferentes, e cada
fiel segue apenas uma delas.
Observamos uma estranha coincidência em todas as religiões do mundo: a maioria esmagadora,
por uma incrível coincidência, escolhe justamente a de seus pais. Não a que apresenta a melhor evidência
a seu favor, os melhores milagres, o melhor código moral, a melhor catedral, o melhor vitral, a melhor
música: quando tem que escolher da lista enorme de  religiões disponíveis, as virtudes potenciais das
mesmas parecem não ter nenhuma importância, se comparada à questão da hereditariedade.
Este é um fato inconfundível; que ninguém poderia seriamente negar. Contudo, as pessoas com
completo conhecimento da natureza arbitrária dessa hereditariedade, de algum modo manipulam suas
mentes para continuar a acreditar em  suas  religiões, freqüentemente com tal fanatismo que estão
preparadas a assassinar os que sigam uma diferente.
As verdades sobre o cosmos são válidas por todo o Universo. Não diferem no Paquistão, no
Afeganistão, na Polônia ou na Noruega. Contudo, estamos aparentemente preparados para aceitar que a
religião que adotamos é mais uma questão de geografia.
Se perguntarmos por que estão convencidas da verdade de sua religião, nunca apelariam para a
hereditariedade. Quando é apresentada dessa maneira sua fé parece  idiotice. Nem apelam à evidência.
Não existe nenhuma, e hoje em dia os mais instruídos admitem isso. Não, eles apelam à fé. A fé é a
melhor maneira de tirar o corpo fora, a grande desculpa para se evadir da necessidade de pensar e
avaliar as evidências. Ter fé é acreditar apesar da, ou até mesmo por causa da, falta de evidência. O pior
é que o resto de nós tem que respeitar isso: tratar isso com luvas de pelica.
Se um abatedor não acatar a lei concernente à crueldade com animais, ele é devidamente
processado e punido. Mas se houver uma queixa de que suas práticas cruéis são exigências da sua
religião, desculpamo-nos veementemente e permitimos que prossiga. Qualquer outra atitude que alguém tome deve-se esperar que seja defendida com algum argumento racional. Só a fé pode ser justificada sem
nenhum argumento lógico. A fé deve ser respeitada; e quem não a respeitar é acusado de violação dos
direitos humanos.
Mesmo aqueles sem nenhuma fé sofreram lavagem cerebral para respeitar a fé dos outros.
Quando os assim chamados líderes muçulmanos da comunidade vão ao rádio e advogam a morte de
Salman Rushdie [5], estão claramente incitando um assassinato – um crime pelo qual seriam
normalmente processados e possivelmente encarcerados. Mas eles são presos? Não são, porque nossa
sociedade secular “respeita” a sua fé, e simpatiza com a profunda “dor” e “insulto” a eles.
Nesse caso, não respeito de jeito nenhum. Respeito seus pontos de vista contanto que possa
justificá-los. Mas se você justificar suas opiniões somente dizendo que tem fé nelas, eu não as respeitarei.

Improbabilidades
Quero terminar retornando à ciência. É freqüentemente dito, principalmente pelos “Não-tem-
nada-a-ver”, que embora não haja nenhuma evidência positiva para a existência de Deus, não há
evidência contra a sua existência. Assim, é melhor manter uma mente aberta e ser agnóstico.
À primeira vista, essa parece uma posição inexpugnável, ao menos no sentido fraco da Aposta de
Pascal [6]. Mas pensando um pouco mais, se revela uma tirada de corpo, porque o mesmo poderia ser
dito de Papai Noel e da Fadinha do Dente. Pode haver duendes nos pontos recônditos do jardim. Não há
nenhuma evidência disso, mas você não pode provar que não há algum por lá. Portanto, não deveríamos
ser agnósticos com relação aos duendes?
O problema com o argumento agnóstico é que pode ser aplicado a qualquer coisa. Há um número
infinito de crenças hipotéticas que poderíamos ter, as quais não poderíamos positivamente refutar. De um
modo geral, não acreditamos na maioria delas, tais como duendes, unicórnios, dragões, Papai Noel, e
assim por diante. Mas de um modo geral, as pessoas acreditam em um Deus criador, junto com o que
quer que esteja incluído na religião particular de seus pais.
Suspeito que a razão disso é que a maioria das pessoas, mesmo não pertencendo ao partido do
“sabe-nada”, não obstante, tem um resíduo de sentimento que o darwinismo não seja abrangente o
bastante para explicar tudo sobre a vida. Tudo que posso dizer na posição de biólogo é que o sentimento
desaparece progressivamente, quanto mais se lê e estuda sobre o que se sabe sobre a vida e a evolução.
Mais uma coisa. Quanto mais se compreende a importância da evolução, mais se é empurrado da
posição de agnóstico para a do ateísmo. Coisas complexas e estatisticamente improváveis são, por sua
própria natureza, mais difíceis de explicar do que as simples e estatisticamente prováveis.
A grande beleza da teoria da evolução de Darwin é que explica como coisas complexas e difíceis
de compreender poderiam ter emergido passo a passo, de um modo plausível, de origens simples e fáceis
de compreender. Iniciamos nossa explicação de coisas quase infinitamente simples: hidrogênio puro e
uma quantidade enorme de energia. Nossas explicações científicas, darwinistas, levam-nos através de
uma série de etapas graduais e bem-compreendidas rumo a toda a beleza e complexidade espetacular da
vida.
A hipótese alternativa, que tudo começou com um ato de criação sobrenatural, não é tão somente
supérflua, mas também altamente improvável. Ela cai em contradição com o próprio argumento que foi
usado para defendê-la. Isto porque todo Deus digno do nome deve ter sido um ser de inteligência
colossal, uma supermente, uma entidade de probabilidade extremamente  baixa – um ser muito improvável certamente.
Mesmo se a postulação de tal entidade nos explicasse qualquer coisa (e ela é totalmente
desnecessária), isso ainda não nos ajudaria, pois cria um mistério ainda maior do que o que ela procura
resolver.
A ciência oferece-nos uma explicação de como a complexidade (o difícil) emergiu da simplicidade
(o fácil). A hipótese de Deus não oferece nenhuma explanação de qualquer coisa que valha a pena,
porque postula simplesmente o que estamos tentando  explicar. Postula  o difícil de explicar, e deixa-o
assim. Não podemos provar que Deus não existe, mas podemos com segurança concluir que Ele é muito,
muito improvável, mesmo.

Notas do tradutor
[1] Nos EUA, é costume das crianças deixarem o dente em algum lugar, e uma moeda aparece em seu
lugar. Claro que os pais trocaram o dente pela moeda, mas as crianças acreditam que foi uma fadinha
que fez isso.
[2] Foi feito um filme sobre essa fábula e nas décadas de cinqüenta e sessenta, fez muito sucesso.
[3] Um seriado popular da TV norte-americana.
[4] Esse título em inglês faz alusão a um filme famoso sobre a teoria da evolução. O nome do filme é
Inherit the Wind (VHS, 1999 e DVD, 1960). Esse filme retrata uma batalha jurídica entre criacionistas e
evolucionistas, travada no Kansas, no começo do século XX.
[5] Autor dos Versos Satânicos, livro que critica a bíblia muçulmana: o Corão.
[6] Um ponto de vista filosófico afirmando que você não tem nada a perder com a fé, pois se Deus existir,
você não perdeu nada ao acreditar nele.

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